Retrospectiva 2023: Melhores Leituras do Ano

O Evangelho Segundo Jesus Cristo – José Saramago

O Saramago sempre foi um escritor que me intimidou. O sobrenome dele parecia muito eufônico e instransponível, um daqueles monstros sagrados incontornáveis mas não necessariamente agradáveis (meio ao estilo Dostoiévski, de quem até hoje não consegui gostar). Mas, depois que tive contato com Memorial do Convento em uma disciplina da faculdade anos atrás, percebi que ele é só um homem que acredita muito na humanidade e muito no amor. E não é estranho um senhor literato idolatrado por tantos acreditar em coisas tão singelas como o ser humano e o amor? Não ser um cínico nessas circunstâncias é tão raro que me pegou desprevenida, e, mesmo já sabendo disso ao iniciar a leitura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo, fui mais uma vez muito surpreendida pelo quão profunda é a crença do Saramago na gente e no amor entre a gente. O Evangelho Segundo Jesus Cristo a princípio parece um reconto mais historicamente preciso da história contada na Bíblia sobre Jesus, mas depois se revela uma narrativa majoritariamente sobre dois homens, José e Jesus, que viveram como marionetes nas mãos de deus, cada um à sua maneira. José, atormentado por uma culpa que nunca conseguiu remir, mesmo sendo um homem quase sempre correto segundo os ditames da religião da época, é muito mais mártir nesse livro que Jesus, pois morre injustiçado pelos romanos ao tentar ajudar um vizinho. Já Jesus, fervoroso apaixonado de Maria Madalena, é apenas um homem tentando lutar contra o destino há muito traçado para ele por deus e, no meio disso, vivendo, amando, se compadecendo e aprendendo com o mundo. Sei que já dei muitos spoilers, mas essa história é famosa demais para haver de fato algum spoiler a dar, e o que é atraente na versão do Saramago são as nuances que ele dá a esses seres de quem ouvimos falar durante toda a nossa vida, fugindo da consagrada narrativa bíblica em muitos aspectos, mas preenchendo-a com muito do que há de mais humano. A catarse que ele oferece eu experimentei pouquíssimas vezes na vida; por isso, ele é a minha melhor leitura do ano e o recomendo demais se você quer lembrar do que a literatura é capaz, do que o ser humano é capaz através da arte, e, independentemente do que você considera sagrado, de que há um tiquinho de sobrenatural nas palavras.

A Casa na Rua Mango – Sandra Cisneros

Como boa obcecada por romances de formação que sou, A Casa na Rua Mango estava no meu radar há muito tempo. Só agora pertinho do final do ano consegui pôr minhas mãos nele, e ele logo passou na frente da minha lista infinita de prioridades. A Sandra Cisneros narra aqui histórias curtas que se unem para formar um romance, mas que não são tão dependentes quanto se costuma esperar desse tipo de narrativa. A protagonista, Esperanza, narra cada uma delas em diferentes tons, às vezes um narrador em terceira pessoa toma a palavra, às vezes a Esperanza nem aparece no capítulo. Talvez mais do que ela, o que dê coesão a essa história seja um sentimento contundente de perplexidade que o perpassa inteiro. A Esperanza assiste às pessoas da Rua Mango viverem suas vidas desprivilegiadas e experiencia inúmeras coisas pela primeira vez sempre com essa sensação de não pertencimento, de não entender muito bem o que está acontecendo, o que deve fazer. E conforme ela cresce, essa sensação não parece se desfazer, mas tomar um rumo mais triste, mais desiludido, de que nada muda, de que tudo acaba sempre do mesmo jeito aterrador e aprisionante que parece ser normal para todos que a cercam. Enquanto pessoa que já quis tanto fugir de uma realidade que me engolia e ameaçava me manter presa a muitas coisas que eu desprezava e temia quanto a Esperanza, esse livro foi tocante de forma bem específica. A Rua Mango podia ser a rua em que eu cresci. Todas essas figuras tristes que desfilam por ela podiam ser pessoas que eu conheci, que faziam parte da minha família até. Não é o livro mais tecnicamente bem acabado do mundo e inclusive tem várias falhas e inconsistências que me incomodaram um pouco, mas entrou nessa lista sem uma ordem específica porque disse muito do que há para ser dito sobre ser uma menina, sobre ser pobre e sobre se sentir estrangeira. Ler o texto que a Sandra incluiu como prefácio muitos anos depois da publicação do livro e se identificar com ela e seu desejo por um teto todo seu é um adendo muito bom pra lavar a alma depois de tanta dor sutil mas afiada.

O Papel de Parede Amarelo – Charlotte Perkins Gilman

Pra quem, como eu, gosta de ler mulheres do século XIX, a Charlotte Perkins Gilman e seu O Papel de Parede Amarelo são quase obrigatórios. Muitas vezes a vida da autora obscurece o conto, o que de certa forma acontece nessa edição porque os textos dedicados à vida da autora ultrapassam a quantidade de páginas destinadas ao texto literário em si, e isso é compreensível, já que a vida dela é bastante fascinante e essa narrativa bebe da fonte da história pessoal da Charlotte. No entanto, deixando de lado seu pioneirismo feminista e suas relações com a vida de sua criadora, O Papel de Parede Amarelo é, por si só, um conto muito bem escrito, que conseguiu me deixar fascinada e perturbada na mesma medida. Aquele universo claustrofóbico do quarto com o papel de parede horrendo, os diálogos apenas com o marido manipulador e condescendente, a sensação de que o tempo está se esgotando para que a protagonista se livre daquele lugar ermo e assustador em que o marido a isolou… Tudo foi construído de forma certeira, com poucas palavras e muito deixado para a inferência do leitor, de modo que é quase impossível não sentir o desespero da personagem, não entendê-la, não chegar a querer resgatá-la, como se isso pudesse resolver a situação de tantas outras mulheres que passaram pelo mesmo. Recomendo demais e pra ontem, porque continua atual e relevante demais.

Belo Mundo, Onde Você Está? – Sally Rooney

Não tenho um pingo de objetividade pra falar sobre a Sally Rooney, então não esperem que nada que eu diga aqui faça sentido. Ela parece entender o espírito do nosso tempo, dos nossos amores, da nossa juventude e do nosso desespero esperançado de uma forma tão precisa que me hipnotiza e não me deixa prestar atenção em questões estéticas e literárias. Nesse livro isso não foi diferente. Belo Mundo, Onde Você Está? narra um período da vida de duas melhores amigas, uma ambiciosa, artística e extremada, a outra mais humilde em suas ambições, moderada e constante. Elas gostam de homens muito diferentes, vivem vidas muito diferentes e vêm de situações familiares muito diferentes, mas compartilham o amor pela literatura, a ânsia pela justiça social (permeada de muita culpa pelo pouco que podem fazer em relação a isso) e a dificuldade de lidar com o amor e a conexão humana. Por mais que aborde inúmeros temas, o livro trata principalmente da dúvida sobre se vale a pena amar, escrever, se importar com o belo e todas essas coisas essencialmente inúteis em um tempo de tanto sofrimento social, colapso ambiental e horror político. E a Sally prova pra gente, e acima de tudo pra ela, que vale sim, que é isso que nos torna humanos, o que quer que ser humano signifique. Por isso sou muito grata a ela, a esse livro, a esses personagens e a essas reflexões que refletiram muitas das minhas próprias inquietações desde 2016 até agora, que foi mais ou menos quando comecei a sentir que o mundo estava acabando e ninguém se importava. Talvez o mundo não acabe agora, como não acabou nas últimas trocentas vezes que outras gerações pensaram que isso ia acontecer, talvez o chão não esteja mesmo caindo sobre a minha cabeça o tempo todo, talvez as pessoas do Instagram que não se sentem assim estejam certas, mas todo esse terror foi determinante na minha vida e na de muitas pessoas que compartilharam estes tempos comigo, e a Sally foi fundamental pra registrar e pensar sobre isso de um jeito talvez não definitivo, mas muito honesto.

A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver – Rosa Montero

Não sei bem como descrever esse livro, e me sinto justificada em não saber, porque a própria Rosa Montero tem dificuldade em categorizá-lo. Ele é uma mistura de memória sobre o luto da Rosa pelo marido Pablo, com quem viveu durante 21 anos; biografia bem pouco detalhada e muito interpretativa da Marie Curie, também com foco no seu luto pelo marido Pierre Currie, que morreu precoce e tragicamente quando eles tinham 11 anos de casados; e reflexão geral sobre o luto. Pierre e Pablo aparecem pouco enquanto indivíduos e muito enquanto objetos de saudade; o pouco que sabemos sobre eles é fruto das memórias favoritas de suas esposas a respeito deles ou coisas semelhantes. A brilhante carreira científica da Marie, embora descrita e constantemente admirada pela autora, também não é um elemento tão importante. O que mais importa é que essa escritora emocional e contemporânea leu um diário do luto de uma mulher que viveu em um contexto histórico completamente distinto do seu, e ali reconheceu uma expressão muito honesta da dor que ela própria também vivia e que descreve como uma espécie de insanidade. Talvez justamente por não seguir uma organização muito sã é que esse livro tenha me tocado: a falta de organização serve bem ao tema do luto, ao modo como ele dá uma rasteira naqueles que atinge, os deixa temporariamente insanos e dá novos significados às pessoas que eles amam. Recomendo ler de peito aberto pra essa verdade incômoda de que os sentimentos são os únicos fatos e de que são eles que compõem cada grama da matéria da literatura.

Afetos Ferozes – Vivian Gornick

Outro livro não ficcional e confesso que estou surpresa por tantos deles terem entrado nessa lista. Afetos Ferozes é um livro de memórias mais tradicional. A Vivian narra grande parte de sua vida, mas especialmente os anos vividos num prédio cheio de imigrantes em Nova York. Na primeira metade do século XX, sua família judia dividia o espaço com italianos, irlandeses e pessoas do leste europeu, que viviam aos berros pelos corredores do prédio, em um tipo de convivência calorosa (em todos os sentidos) que não existe mais entre vizinhos. Nova York e sua mãe são figuras monumentais aqui, determinantes para tudo que acontece na vida da autora, e por mais que eu tenha achado o livro inconstante em qualidade e não muito coeso (se a gente for pensar num sentido mais lógico mesmo), esses dois aspectos me conquistaram muito. Ver a relação conflituosa entre essas duas mulheres de vontade férrea, que se estende pelas ruas de Nova York até a mãe ficar idosa, foi muito interessante pra mim. Recomendo pra quem, como eu, gosta de ler sobre mães e filhas teimosas e sobre a Nova York do século XX.

Heimat – Nora Krug

Um HQzinha dando o ar da graça pra iluminar essa lista. Heimat é uma narrativa visual autobiográfica que mistura colagens, arte sequencial, fotos e ilustrações pra narrar a jornada da Nora Krug pra se reconciliar com a sua identidade enquanto alemã e a sua culpa coletiva pelo holocausto. Ela se questiona o que, além da Segunda Guerra Mundial, é determinante na identidade do país, como se gerou a culpa inescapável que ela carrega, qual foi o papel da sua família (a parte dela que de fato viveu a época) na Guerra, de que lado eles ficaram, como o lugarejo de onde ela veio foi marcado por isso. Juntando as peças desse mosaico confuso, doloroso e, em última instância, impossível de solucionar, a Nora vai fazendo reflexões sociais e humanas muito profundas e pertinentes nos nossos tempos pra qualquer um, alemão ou não. Recomendo muito.

Igualzinho a Você – Nick Hornby

O Nick Hornby é um caso de amor insuperável na minha vida literária. Eu posso passar quanto tempo quiser longe dele, ele pode mudar drasticamente de temas quantas vezes quiser, mas todas as vezes que nos reencontramos é sempre divertido, surpreendentemente reflexivo e atual. Esse livro foi especialmente agradável pra mim porque abordou uma coisa que me perturba constantemente, que são as pessoas que se consideram “apolíticas”, que não ligam tanto assim pras questões políticas, que não acham que ela faz diferença, que nós, “politizados”, vivemos julgando e culpando (talvez com razão) por coisas como Brexit, que é o pano de fundo desse livro. O Nick não julga; ele só descreve a vida do seu personagem em toda a sua inglória falta de interesse pelo que está acontecendo, em toda a sua indiferença pelo que quer que não diga respeito à sua sobrevivência direta, aos seus desejos mais básicos. E você, com uma grande sensação de culpa, entende ele, e simpatiza com ele, e torce pra ele ficar com a mulher incrível que é o outro lado da moeda nessa história (que se parece muito mais com nós). Recomendo com ressalvas porque sei que o estilo mais cínico e despretensioso do Nick não é pra todo mundo, mas eu amei.

A Época da Inocência – Edith Wharton

Última leitura do ano, fechando-o com chave ouro. Eu já tenho esse livro há uns 11 anos na minha estante, mas só agora fui criar vergonha na cara e lê-lo. Se arrependimento matasse, eu estaria mortinha da silva por não lê-lo lido antes, porque ele 100% um romanção histórico de formação e de costumes sobre a alta sociedade novaiorquina dos anos de 1870, com um homem à frente do seu tempo (por, pasmem, achar que mulheres merecem alguns direitos) como protagonista envolvido num triângulo amoroso com as duas faces da dualidade feminina tão alardeada por homens escritores há tanto tempo: a virgem e a puta. Só que nesse livro elas não cumprem esses papéis à risca, as relações que elas estabelecem com ele surpreendem em muitos aspectos e as reflexões que o protagonista Newland faz sobre as expectativas sociais, os desejos pessoais e os sacrifícios que todos fazemos para tentar conciliar os dois são geniais. Quero ler tudo que a Edith já escreveu e convido todos a fazerem o mesmo.

Yentl – Isaac Bashevis Singer

Esse foi o primeiro livro que eu li esse ano, e o fato de ele figurar nessa lista mesmo depois de tudo que eu li ao longo desse tempo depõe muito sobre a qualidade dele. Yentl é um conto longo? Romance curto? Novela? Não sei muito bem, mas o que importa é que ele narra a história (não muito bem situada no tempo) de uma moça judia, a Yentl do título, que após a morte do pai decide estudar a torá e se tornar um rabino, algo inimaginável para uma mulher na época e na região em que ela vive (e talvez até hoje?). Para isso, ela se veste de homem e se dirige a um local de estudos desse tipo, onde conhece um outro jovem estudante por quem se apaixona. A partir daí o que a gente tem é uma espécie de conto de fadas surpreendente que questiona gênero, sexualidade e papéis sociais de uma forma tão natural e, por falta de palavra melhor, lúdica, que eu terminei a leitura em uma sentada. POR FAVOR, EDITORAS, RESGATEM O ISAAC BASHEVIS SINGER, RESGATEM YENTL, TEM ATÉ FILME COM A BARBRA STREISSEND, NÃO TEM SENTIDO SÓ TER UMA EDIÇÃOZINHA PRÉ-HISTÓRICA E HORRENDA NO BRASIL Enfim, recomendo demais e se tornou um dos meus favoritos da vida por muitos motivos, mas especialmente pelo domínio narrativo do Isaac.