Blá, blá, blá: Justiçamento na avaliação literária e outras questões da cultura de resenhas na internet

A ideia desse post me veio por causa do polêmico Tudo É Rio da Carla Madeira. Ele é amado, idolatrado, salve salve por muitas pessoas (inclusive eu), mas aquelas que odeiam, odeiam com força extrema. Eu entendo odiá-lo por aspectos literários, até porque, como eu mesma mencionei na minha resenha, o enredo e a linguagem são meio folhetinescos, e alternavam momentos de grande beleza e elegância na narrativa com outros bem rasos e batidos. Mas a maior crítica entre essas pessoas que odeiam o livro é por “romantizar” (odeio o que o twitter fez com essa palavra) ou talvez “normatizar” (que é uma palavra pior ainda) algumas questões como violência doméstica, prostituição, incesto (tio e sobrinha) e essa crítica realmente não faz sentido pra mim. Parece haver uma ideia hoje de que tudo tem que ser muito didatizado em ficção: “racismo é ruim”, “violência doméstica é ruim”; “prostituição é ruim” e se isso não estiver explicitamente afirmado no livro ele está “romantizando” ou “normalizando” essas coisas. Também parece haver uma exigência de que todos os personagens sejam socialmente conscientes: o personagem pode ser um serial killer, por exemplo, e todo mundo parece adorar um personagem serial killer carismático, mas não pode ser homofóbico, porque isso de algum modo parece espirrar no autor e virar um demérito da escrita dele, um motivo pra se tirar uma estrela do livro na avaliação no Skoob.

O que acontece é que as pessoas transformaram a literatura e a ficção em geral num campo de disputa de virtudes morais. Se os personagens não têm essas virtudes ou se o autor não se presta a problematizar questões sociais (porque o objetivo do livro não é esse, nesse caso), então o livro é ruim, o autor é problemático, não se pode mais lê-lo. A questão é (e que fique claro que eu tenho uma grande consciência social e tenho certeza que esse post não retira minha carteirinha de feminista ou de aliada LGBTQIA+) que esse tipo de avaliação de literatura é simplista, boba e nem de longe tão acertada quanto as pessoas que a defendem parecem pensar que é. Ela revela que você não leu o livro, que não tem capacidades básicas de interpretação de texto e que muito provavelmente usa as pautas sociais como um estandarte moral pra olhar de cima pra toda e qualquer pessoa que não se encaixa no que você, grande patrulheiro, considera certo. O autor de um livro de ficção não é obrigado a ensinar a ninguém que racismo é errado, e se ele se propõe a representar um personagem racista, e não explicita na narrativa de um jeito bem didático que esse personagem está errado, isso não significa que o autor também é racista ou que o livro é “problemático”, só significa que em uma representação “realista” do mundo vai haver pessoas racistas e elas nem sempre vão ser antagonizadas por um mocinho com consciência social e se dar mal no final.

No caso específico de Tudo É Rio, não é porque existe um caso de incesto que não é tratado com o horror que essa leitora específica considera necessário e em que se desenha uma espécie de relação afetiva, não quer dizer que a autora está “romantizando” a relação entre tio e sobrinha ou “normatizando” esse tipo de relacionamento, mas que talvez ela confie na capacidade crítica do leitor de entender que aquilo é uma história de ficção que representa um acontecimento isolado em que uma pessoa desenvolveu um relacionamento sexual nada saudável com um parente por diversas questões psicológicas MAS QUE ELA NÃO VÊ COMO NÃO SAUDÁVEL. Talvez a autora tenha tentado falar sobre uma prostituta que não enxerga a profissão do jeito que o feminismo liberal em geral enxerga, como escravidão sexual, e não tenha focado nas dificuldades (que ela reconhece que existem) dessa profissão porque o objetivo da narrativa era outro.

Eu estou focando em Tudo É Rio porque foi uma crítica que me deixou especialmente irritada quando li, mas retirar uma representação ficcional de contexto e tratá-la a ferro e fogo como uma opinião do autor ou um livro problemático é uma tendência geral não só entre os leitores, mas entre uma nova geração de escritores que tem surgido e que anuncia seus livros não mais pelo enredo, mas pelo tipo de representatividade que ele vai ter: “representatividade ace”, “representatividade trans” ou qualquer outra. E se cria quase uma pressão contra falar mal a respeito desse livro porque ele é supostamente “necessário” (outra palavra que eu odeio ver aplicada à literatura) por ter essa representação.

A questão é: um livro com representatividade responsável de qualquer que seja a minoria ainda pode ser ruim e mal escrito. Contratar um leitor sensível e não contratar um leitor crítico nem faz sentido. E avaliar os livros em uma moralidade rasa de certo ou errado é absurdo. Inserir problemas sociais e discussões bobas, didáticas e mal contextualizadas em um livro apenas pra aplacar um senso de justiçamento que parece ter tomado conta das pessoas é estúpido. A ficção pode ter outros objetivos que não sejam o questionamento social. E o questionamento social pode servir pra diminuir o valor literário de um livro quando feito de forma forçada.

Top 5: Autores Que Conheci Este Ano (2021.2)

Todo ano eu faço uma lista dos melhores autores que li pela primeira vez até o meio do ano, mas só em anos de muitas primeiras experiências com bons autores/autores que quero continuar lendo é que eu faço uma segunda lista no final do ano, porque, em geral, no começo do ano é que eu acabo lendo as maiores novidades, e conforme o estresse vai se acumulando durante o ano eu vou me voltando pras coisas menos desafiadoras que eu já conheço. Este ano vai receber um segundo post porque foi muito recheado de ótimas leituras e ótimAs novAs autorAs, mas tive que colocar “autores” ali no título mesmo sendo uma lista 100% feminina porque não ia conseguir encontrar o post na pesquisa dos arquivos do blog se escrevesse “autoras”.

Ottessa Moshfegh

Essa lista não está organizada em nenhuma ordem específica, mas acho que a Ottessa é a autora mais literariamente promissora (num sentido estritamente técnico mesmo) entre as que eu listei aqui (tirando a consagrada Sylvia Plath, claro). O livro que eu li dela é o seu mais conhecido, Meu Ano de Descanso e Relaxamento, e foi uma leitura sombriamente engraçada, por vezes um pouco perturbadora, mas sempre muito contundente. Acho que escrever uma protagonista tão horrenda como a narradora desse livro é um desafio muito grande porque grande parte do apelo da ficção vem da identificação e muita gente não se identificaria ou não ia querer se identificar com alguém tão cínico, vazio e ofensivo como ela. Mas a habilidade da Ottessa, que fez ela estar aqui, é justamente de te obrigar a se identificar com esse ser humano que, por todos os motivos racionais, você deveria desprezar, e de tirar leite de pedra em um enredo em que nada acontece e que tem um total de três personagens nomeados e recorrentes. Enquanto escrevo o post dei uma pesquisada e parece que outros livros dela já foram/estão sendo publicados no Brasil, então posso sim criar expectativas de ler mais dela num futuro próximo, especialmente Meu Nome Era Eileen que saiu pela Todavia e que tem mais uma mulher perturbada e zero enredo, do jeito que eu gosto.

Frances Cha

Ainda na editoria mulheres contemporâneas perturbadas, a gente tem a Frances Cha, que me deu não só uma, mas 5 piradas, dessas vez coreanas pra eu me identificar a meu bel-prazer. If I Had Your Face foi o livro de estreia dela e apesar de ter feito barulho lá fora, não foi trazido para o Brasil. Fiquei muito positivamente impressionada com esse livro, apesar de ele ter alguns defeitos, a ponto de esperar genuinamente empolgada pelo próximo livro dela. Acho que o que me ganhou foram as metáforas muito poéticas e sensíveis que ela coloca inesperadamente no meio de contextos violentos, cínicos e tristes e o fato de que, por mais que suas personagens habitem um mundo urbano muito desesperançado e pessimista, ainda há alguns momentos em que transparecem genuína lealdade, amizade e carinho, que são raros, mas fazem tudo isso parecer suportável e essas mulheres parecerem menos um estudo social da Coréia do Sul contemporânea e mais seres humanos bem desenvolvidos ficcionalmente.

Sylvia Plath

Um pouco menos atual, mas não menos perturbada das ideias, temos a Sylvia Plath. A Redoma de Vidro seria extremamente my shit na minha fase tumblr-sad-girl-queria-estar-morta-aesthetics, e eu quase consigo me ver pesquisando obsessivamente imagens artísticas de trechos desse livro no tumblr pra reblogar na minha página cheia de outros trechos tristes de livros, de música e de filmes. Também consigo me ver desenvolvendo uma obsessão pelo suicídio dela e por descobrir como ela chegou a esse ponto, do mesmo jeito que fiz com o Kurt Cobain na época. Mas eu não sou mais essa pessoa, então ao invés de ficar encantada com as vibes “artista atormentada que não consegue viver na própria cabeça” enquanto pessoa mórbida que fui, eu só fiquei bastante impressionada com o poder, a poesia e a singularidade das imagens que a Sylvia cria nesse livro. Você percebe bem claramente que é uma poeta escrevendo um romance e não uma romancista que se arriscava também na poesia, porque o próprio modo como ela pensa a estrutura das frases pra mim soava inédito, mesmo não sendo complexo, mas sim simples e bonito. É um livro meio aterrorizante e perturbador e você precisa estar equilibrada pra ler, na medida do possível, porque ele começa te vendendo uma história de formação e depois degringola subitamente pra um canto muito sombrio e feio da mente de uma garota que parece que nunca vai ter saída, mas é uma das melhores coisas que eu já li, a ponto de me fazer querer ler poesia e diários depressivos se isso significa ter mais alguma coisa dela pra ler.

Julia Lopes de Almeida

Agora partindo pras cidadãs pacatas que nunca nem precisaram de terapia, vamos falar de Julia Lopes de Almeida. Essa mulher me deu tanto prazer em lê-la e tanta revolta pelo seu esquecimento, que eu simplesmente decidi que vou escrever uma dissertação de mestrado (se eu um dia conseguir fazer um) sobre ela. Também saí comprando todas as obras dela disponíveis em formato físico, que somam um total de três e só estou esperando um tempinho pra cair de cabeça nelas. Mas sobre a obra que eu de fato já li, que foi A Intrusa, o que eu tenho a dizer é que a Julia inventou a novela das seis E EU AMEI. Não é o livro mais tecnicamente refinado ou mais original e também teve seus momentos meio melodramáticos, mas nos momentos em que ele acerta, acerta muito. Fiquei com algumas imagens na cabeça por dias, de tão lindamente descritas, como o momento em que uma moça diz adeus docemente ao protagonista na penumbra de um pátio em estilo japonês, vigiados por estátuas de gueixas ou uma corrida de fragatas em uma manhã de domingo no litoral do Rio de Janeiro. Os comentários políticos dela sobre o início da república e sobre o papel social das mulheres também foram muito lúcidos e certeiros e mal posso esperar pra saber como eles vão rolar em livros em que sejam verdadeiramente o foco, ao contrário de A Intrusa.

Min Jin Lee

A Min Jin Lee foi outra autora que talvez não seja tão literariamente genial, mas que me deu um prazer imenso em ler e que me lembrou que bons livros são, acima de tudo, histórias bem contadas. Pachinko soa como uma longa história de família contada oralmente por alguém muito habilidoso em fazer você se importar com aquelas pessoas, além de ser um vislumbre cultural e histórico muito rico da saga dos coreanos no Japão. A narrativa é envolvente e contém um mundo de possibilidades, questionamentos e experiências muito particulares desses imigrantes que é difícil de imaginar conseguir reunir em menos de 500 páginas, e é por isso que quero muito ler outras coisas dela e saber a que outros temas ela vai voltar esse olhar sensível que consegue resumir nessas vidas pequenas que são contadas sentimentos tão gigantescos.

O Que Estou Lendo?: À Margem do Lago – Sarah Gruen

Acho que não é segredo pra ninguém que minha espécie de comfort books são os romances históricos sobre Segunda Guerra Mundial, empatados com romances escritos por mulheres do século XIX. Às vezes eu passo um tempo sem lê-los, mas sempre acabo voltando e é sempre como voltar pra um lugar que eu conheço. Muitas vezes não é um lugar agradável, porque alguns desses livros são bem pesados, mas é sempre um lugar familiar. Acho que foi até por isso que no ano passado, no momento mais intenso e confuso da pandemia, foi pros classicões sobre Segunda Guerra que eu me voltei, com Matadouro 5 do Kurt Vonnegut e Maus do Art Spielgeman, porque parecia que eles me consolariam de algum jeito do pânico de estar vivendo um acontecimento histórico assustador. Esse ano eu só tinha lido um livro sobre o tema, e nem era exclusivamente sobre ele, porque Pachinko da Min Jin Lee se passa ao longo de grande parte do século XX, incluindo a Segunda Guerra, então não é surpreendente que mesmo não estando nos meus planos de leitura para o final do ano eu tenha ido parar na leitura de À Margem do Lago.

À Margem do Lago, além de um livro sobre a Segunda Guerra Mundial, é um livro sobre o monstro do lado Ness, o que não deveria parecer interessante pra mim (ou pra quase qualquer pessoa no mundo em pleno 2021), mas estranhamente parece. A protagonista Maddie é casada com um americano chamado Ellis que vem daquelas famílias de fortuna antiga, que vivem em grandes mansões e fazem vários nadas o dia inteiro porque trabalhar é indigno pra eles. A sogra de Maddie a detesta, mas todos vivem sob o mesmo teto, até que em uma noite de bebedeira o Ellis enfurece o pai (que já não andava muito satisfeito com o filho por ele ter sido rejeitado para servir na Guerra por ser daltônico) ao relembrar a vergonha que foi o pai, um digno veterano de guerra, ter forjado fotos do monstro do lago Ness anos antes, em um surto de obsessão por exposição nos jornais.

Depois de expulsos de casa pelos pais de Ellis, o que ele mais quer é provar que o monstro realmente existe e humilhar o pai. E aí acaba arrastando a Maddie e o melhor amigo Hank pelo meio do Atlântico em plena guerra, com direito a bombardeios submarinos constantes, para a Escócia, porque isso é o que qualquer pessoa em plena posse das suas faculdades mentais faria no lugar dele. A princípio, e não acredito que eu vá mudar de opinião ao longo do livro, todo mundo aqui é bem desprezível. O Ellis é um mimado cheio de mudanças de humor bruscas e ataques de raiva completamente desproporcionais. O Hank parecia só um cara fútil e charmoso, mas logo depois se releva um assediador de criadagem que acha que as “serviçais” estão ali pra servi-lo de todas as formas que ele quiser. E a Maddie vive só pra agradar os dois, mesmo não sendo igualmente terrível: foi justamente pra agradar os dois e não parecer uma chata que não gosta de aventuras que ela aceitou viajar com eles para a Escócia.

O núcleo de personagens da Escócia é bem menos pior, principalmente os funcionários da pensão: o grande e barbudo Angus, que é gerente/faz-tudo, a simpática e cheia de brios Anna, e a improvável Meg. Já sei exatamente onde o contato da Maddie com um mundo longe dos privilégios e da vida de aparências que ela conhecia nas altas rodas dos Estados Unidos vai levá-la e isso pra mim não é um defeito. É justamente o que eu estou procurando em um momento em que tenho pouquíssimo tempo pra ler e só quero uma leitura prazerosa e ágil.

De resto, estou gostando muito. Eu amo a habilidade dessa autora de descrever só o suficiente pra te imergir naquela época e ambientação, sem tornar a leitura maçante ou historicizada demais e também estou amando as críticas à classe alta americana que fazia qualquer coisa para apaziguar seu tédio enquanto o mundo acabava ao seu redor em uma guerra sangrenta.