Resenha: Belo Mundo, Onde Você Está? – Sally Rooney

Nos últimos tempos, eu vinha passando por uma fase muito difícil, que durou meses, em que não conseguia concluir leituras, mesmo as mais curtas ou fluidas. Talvez fosse minha saúde mental, o excesso de cansaço do trabalho (em que eu leio e olho para telas o dia inteiro) ou apenas a boa e velha ressaca literária, mas o fato é que tudo me parecia desinteressante demais pra ir até o fim, por mais rápido que fosse possível terminar determinado livro.

Tentei vários livros que se empilharam inacabados na minha mesa, mas o que acabou funcionando de verdade foram férias e o reencontro com uma autora querida. Eu não sou muito de esgotar a lista de produções de um autor porque acabo sempre querendo experimentar o máximo possível de autores diferentes, de modo que o máximo que leio de um autor só (exceto dos meus preferidos) são dois livros. A Sally Rooney tem apenas três livros publicados, e por mais que eu tenha amado Pessoas Normais, acabei não lendo mais nada dela até agora, quando vim com o rabinho entre as pernas procurar arrego em Belo Mundo, Onde Você Está? e na escrita extremamente atual, sensível e identificável da Sally.

Belo Mundo conta a história de duas melhores amigas, Alice e Eileen, que se conheceram na universidade e dividiram apartamento por alguns anos em Dublin. A Alice é uma escritora bem sucedida e depois de um colapso nervoso, por conta do qual passou algum tempo em um hospital psiquiátrico, se mudou para uma cidade pequena na costa da Irlanda. Já a Eileen trabalha em uma revista literária que paga muito mal e ainda vive em Dublin, mas, depois de se separar do namorado com quem morava, passou a dividir apartamento com um casal de quase desconhecidos.

Cada capítulo é narrado em terceira pessoa, alternando o foco entre a Alice e a Eileen, e ocasionalmente entre os seus respectivos interesses amorosos, Felix e Simon. Após esses capítulos em terceira pessoa, há e-mails trocados entre as duas, os quais são escritos em primeira pessoa, menos focados nos acontecimentos de suas vidas e mais voltados para o senso de decadência do mundo que muitos jovens estavam sentindo no final da década de 2010, com a ascensão de políticos conservadores e reacionários em diversas partes do mundo e, no Reino Unido, com o Brexit.

Esse contraste entre a sensação de colapso mundial e a aparente trivialidade das emoções amorosas das personagens é o ponto mais interessante do livro pra mim. Em vários momentos parece que a questão crucial da narrativa é se os afetos são mesmo dignos de preocupação quando há tantos problemas maiores acontecendo no mundo à sua volta. É uma espécie de procura pelo sentido da vida, que é diferente para cada um dos 4 protagonistas (Simon é católico praticante e encontra em Deus o seu sentido, Felix é focado apenas no presente e no prazer), mas que pra Eileen e a Alice parece se alternar entre o afeto, a arte e a mudança social. Como muitos de nós, elas se frustram pela grande consciência que temos dos problemas sociais e a nossa absoluta incapacidade de saná-los, pela inutilidade mas ao mesmo tempo necessidade de beleza e arte, pelo quanto sofremos com os mais banais dramas amorosos, sexuais ou de amizade.

Outro tema interessante que eu já tinha notado em Pessoas Normais mas que ficou bem mais evidente em Belo Mundo foi o da diferença de classes. O Felix personifica essa questão e eu ainda não consegui me decidir se achei a representação dele ruim ou se ele é um retrato bem decente de um proletário. O Felix trabalha num depósito, na função mais braçal e mecânica possível, não se importa com arte ou literatura, nem liga especialmente pra política. Ele não é lá tão consciente de questões sociais, inclusive há um cena bem significativa em que a Alice descobre que ele assiste a um tipo de pornografia especialmente degradante para as mulheres, não tem um grande vocabulário emocional e é até bem maldoso com as palavras em alguns momentos em relação à Alice. Por outro lado, ele tem algumas características que contrastam com essa certa brutalidade: talento e sensibilidade musical, devoção por sua cachorra, bissexualidade bem resolvida e uma grande capacidade de observação e percepção das pessoas. De certo modo, a tentativa de convencer o leitor de que ele seria interessante para uma mulher com uma vida tão diferente da dele, ainda mais quando ele em tantos momentos a magoa, parece forçada. Em alguns momentos, a comunicação entre eles é tão ruim que parece que falam línguas diferentes, e por mais que haja uma química, uma identificação entre eles sobre questões de saúde mental e sexualidade, e até uma semelhança no modo como se comunicam bruscamente, a disputa de poder entre eles, visto que ele se sente inferior pela carreira dela e sua cultura, parece desbalanceada para o lado dele, pois, para se defender disso, acaba usando a atração e o afeto que ela sente contra ela, para diminuí-la.

Mesmo assim, foi interessante pensar sobre esse contraste de visões de mundo e de expectativas, especialmente em um livro em que os outros personagens são todos tão enredados em questões abstratas, filosóficas, morais e estéticas, o Félix, a sua vida, os seus amigos, pareciam dar à obra uma dimensão menos distanciada da realidade das pessoas com quem a Alice, a Eileen e o Simon tanto dizem se preocupar, aqueles mais socialmente oprimidos.

Eu certamente acho esse livro menos bem acabado que Pessoas Normais, que parecia mais direto ao ponto no seu objetivo, mas claro e aprofundado. Belo Mundo acabou mexendo com temas demais que talvez não tenha sido tão bem sucedido em explorar. Mesmo assim, ele tem seu charme, principalmente em ser um registro tão honesto de um tempo (que parece ter culminado na pandemia, assim como o livro) em que ser jovem e ter consciência do mundo parecia tão terrível, em que parecíamos tão próximos do apocalipse, o que quer que ele fosse, em que nos sentíamos tão sós e impotentes. E apresentar, contra todas as expectativas, uma perspectiva esperançosa até onde é possível, vendo no mundo espaços, ainda que muito pequenos, para mais ternura, mais beleza, mais atitudes que, por mais estúpidas que pareçam por uma perspectiva mais racional, são muito necessárias para esse animal humano tão carente, parece insanamente corajoso, destituído da pretensão do reconhecimento crítico, preocupado mesmo com a matéria humana que tanto sofreu nos últimos tempos. Por isso sou grata por esse livro ter me encontrado, pela Sally Rooney ter encontrado sentido pra continuar escrevendo sobre amor mesmo nesses tempos, pela grande insignificância histórica que é estar no mundo e amar e ver e pensar.